Dona Dalvina em: O Calcanhar do Aquiles


Lá ia Dona Dalvina, caminhando para a feira em um domingo ensolarado quando seus passos foram interrompidos por uma imensa pedra no calcanhar esquerdo. Tratou logo de soltar os cães pra cima da pedra que coitadinha, se mantinha inerte e sem vida, apenas ouvindo as barbaridades de uma velha feia e corcunda. Era de se esperar que Dona Dalvina catasse a pedra para dentro da bolsa de feira e a levasse para a casa, o que talvez a rendesse mais tarde uma bela sopa.
Acontece que a raiva era tanta por ter tropeçado, que a velha juntou a fúria com a vontade de comer, jeito antigo e estranho que fazia de Dona Dalvina uma velha misteriosa. Era uma espécie de bruxa do 71 do bairro, só que no seu caso era do 84.
Uma vez causou espanto na vizinhança ao mastigar um giz que haviam tacado pela janela em sua cabecinha de algodão. A cria logo se entregou, chorando ao ver a cena horripilante da velha devorando um insignificante objeto de riscar, e correu para dentro de seu aposento. Dona Dalvina lambeu os beiços, cuspiu um cuspe seco e saiu caminhado, bufando a cada passada, sempre atenta a mais uma brincadeira de mau gosto dos desprezíveis pestinhas.
Mais estranho do que tudo isso foi à dor que revirava seu frágil estômago e subia até o esôfago vagarosamente, projetando um mal estar fácil de perceber por Roberto Magú, que vinha em sua direção pronto para pedir um trocado a fim de garantir a xepa.
A Velha Corcunda por sua vez, se concentrava em se abaixar para pegar a pedra que parecia fugir de sua pequenina mão de pele murcha. Cada tentativa a danada corria pelo asfalto, deixando-a de quatro no chão. Roberto Magú ao ver aquela cena correu para ajudá-la, sua tentativa se resume à deficiência misturada à ineficácia. Não demorou nem um segundo para que Dona Dalvina estivesse atirada no mormaço de um asfalto de onze horas da manhã. O Jeito brutamonte de Magú quase fez quebrar-lhe os ossos. Quem passava pela rua principal que dava acesso a feira via a bizarra imagem de uma velha com um rinoceronte de meia dúzia de dentes.
Dona Dalvina como era de se esperar, gritou com a voz enforcada:
- Magú...Magú...Sai de cima do meu...
Sua voz foi abafada pela buzina de uma caminhonete que passou rente ao meio fio, Magú chegou a sentir o vento assobiar em sua careca. Contornou o ombro para a direita, alavancou a perna esquerda e forçou os punhos contra o asfalto, impulsionando com toda força para não esmagar a pobre coitada.
- Perdão Dalvina! É que eu pensei que…
- Ah… pensou que nada… rapaz indecente! Olha, mais se tu fosses metade do meu tamanho eu te dava uns tabefes. Ai meu calcanhar… - a dor a fez lembrar da pedra que a acertou – a pedra… por raios, onde está aquela criatura que me acertou?
Magú sem entender bulhufas, mesmo em um caso tão simples como aquele, indagou:
- Minha velha, do que estás falando? Ninguém te acertou nada.
Dona Dalvina olhou a pedra se rastejando em meio ao fio de paralelepípedo e gritou:
- Ali! Olha a danada ali, pega ela Magú... Pega ela...!
Magú se manteve inerte e em silêncio, ouvindo apenas a velha acusar aos gritos a pedra recostada e indefesa.
- Pega ela Magúúú...
E nada. Roberto estava calmo e com os pés bem fincados no chão. Olhava para aquele corpo duro e imaginava qual seria o crime grave que havia cometido. Por sinal, não havia crime nenhum e a pedra, na verdade, era uma caixinha acinzentada em forma de bola. Um pouco deformada devido a pancada que levou de uma velha quase do seu tamanho, levando em conta o exagero do autor.
O Rinoceronte de um metro e noventa olhou para Dalvina e quase por impulso soltou uma risada que ecoaria até o último feirante, o qual vendia o penúltimo lote de banana. Meio que em transe pela enorme diferença entre uma pedra e uma caixa, Magú ria por dentro de tal maneira que seu corpo doía até os ossos.
- Dalvina… é só uma caixa. – comenta, ao mesmo tempo em que a suspende em suas mãos. – você devia ter vergonha, ter medo de uma coisinha tão sem vida assim, mas que fracasso…
No que responde Dona Dalvina sem graça:
- Fracassar não é cair… é recusar-se a levantar. - resmungava a velha enquanto pegava da mão de Magú a caixinha frágil e indefesa.
Em seguida a velha soltou um risinho ao canto da boca. Achou graça de si mesma. Colocou a caixinha dentro de sua sacola de feira, vazia, assim como seu estomago que se acostumara a receber, nos dias de domingo, frutas e verduras a cada barraca de cada feirante. o que a fez ficar conhecida como "Boca Nervosa". Mas hoje seria a caixinha, a sacola e Dona Dalvina. E quem sabe, uma bela sopa.


Texto produzido por Amigo Urso. Caso compartilhem, por favor, me coloquem nos créditos.

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