O Fim da Morte



Não havia nada o que fazer. As pessoas simplesmente haviam deixado de morrer. O que parecia ser uma fila de espera para o dentista, na verdade, eram dentes saciados por carne fresca. A morte se dividia em três, e se resumia somente a isso. Antes, eram em números que se perdiam na contagem. A cada três segundos alguém morria num canto de terra, agora o cheiro de vida é inalado de forma obrigatória. Deus havia vencido? Os humanos haviam derrotado a morte? As respostas nada mais eram do que a simples existência. Além do mais, quem iria se importa em saber o porquê não falecia? A idéia de vida eterna trouxe esperança até para os leitos.
A maior parte dos hospitais estavam vazios, e quem adoecia permanecia em casa, acesos. O câncer virara símbolo de moda - o de fígado havia entrado no top-five do mês - A venda de cigarros cresceu como nunca, ultrapassando todos os limites. O do álcool também. Em menos de uma semana os acidentes de carro viraram uma brincadeira de criança. Pior foi para os suicidas que perderam o único objetivo de vida. Ninguém queria saber mais de nada, nem de se alimentar, pois a fome não mais matava. Os cargos políticos não eram mais disputados já que ninguém tinha o que prometer e nem o que protestar. O desejo mais cobiçado já havia sido conquistado.
A vida tinha seus defeitos, mas era estonteante e prazeroso saber que todos podiam viver ao lado da pessoa que mais amava. “Que seja eterno enquanto dure” não mais se usava, a certeza de que seria para sempre cativava os amantes e entristecia os mal-casados. A terra se dividia em críticas e elogios, e a morte se recolhia cada vez mais ao seu aposento.
Acontece que o Sindicato dos Mortos havia entrado em acordo com o Conselho Infernal, de modo que, deixassem os vivos permanecerem vivos por toda a eternidade. Tudo isso se devia ao fato de que o inferno já havia ultrapassado sua cota de habitantes. Mania era aquela de a cada dez que falecia, nove tinham vagas no inferno. O céu era para poucos, e de quando em vez, um decidia mudar de residência, achava aquele azul uma calmaria que só. Entediavam-se em saber que não havia partidas de futebol, nem rosquinhas açucaradas com café e molhos picantes com pão e salsicha dentro.
A morte sabia que seu último suspiro era quase que inevitável. Mas como morrer sendo a própria morte? Era uma tarefa difícil para o Conselho, expulsar a pobre coitada de seu cargo ocupado a milhões de anos. Pensaram minuciosamente em cada idéia, a fim de não fazê-la sofrer demais. Era preciso muita coragem para demitir alguém que distribuía dor a quem necessitava. A morte jurava vingança ao Sindicato e todos aqueles a quem ela deixou livre, por um tempo, de sua foice. Era necessário fazer algo, seu tempo estava acabando, a fila havia diminuído visivelmente, e agora só restava uma, a única e própria morte, aguardando a porta de madeira velha se abrir. Sua sentença estava na mão do Conselho. Ali, ao seu lado, uma caneca com chá quente. Pensou em beber um pouco, mas não sentia sede desde que se manteve sentada, apenas percebeu o quanto era seu nervosismo diante de uma situação de vida ou…
Pela primeira vez, uma gota de lágrima surgiu em sua face aterrorizadora. Pela primeira vez durante toda sua atuação. Era de se esperar que a morte sentisse remorso pelos seus atos cruéis, e que diante daquela situação, via o quanto era insignificante o ser humano. Sentiu-se como um deles, sentiu nos ossos alguém lhe convidando para dormir o sono eterno. Antes de entrar por aquela porta, ainda lhe restou um sorriso meio entreaberto e o juramento que fez a si mesma que jamais voltaria a cometer o mesmo erro. Sentiu-se só, assim como a velha de cabelos macios como algodão que havia levado consigo. Foi a última vez que pode carregar alguém. Se soubesse que seria a última teria saboreado mais, até porque esse era o seu ofício e ninguém mais do que ela mesma para cometer essas ações. Ela adorava, fora criada para isso, e somente para isso fora treinada. Em meio ao suor que percorria suas mãos geladas, conseguiu lembrar de um homem alto que conseguira conversar. Era chegada a vez dele e o homem pedia a Deus para não levá-lo naquela noite. A pontada em seu peito ardia como arde o sol. Insuportavelmente. Ele se rastejou até um beco, não queria que ninguém o visse morrer ali, no meio da rua. Era forte o bastante para morrer sozinho, se assim fosse. Segundos depois, viu uma sombra projetada na parede, enorme e deformada. Era a morte. Ela o convidou gentilmente para dormir, mas o homem se negou. Ela insistia pouco a pouco, e nesse tempo a dor do homem era mais forte e ele pediu que o não levasse, pois tinha ainda que matar mais duas pessoas em vida. A morte se surpreendeu, era esse o trabalho dela, não o dele. Mas era como matar dois coelhos num cajado só. Disse: vá! E o homem foi. Pensou que se algo desse de errado, ou se aquele homem tivesse mentido para ela, a sua ida iria ser muito mais dolorosa do que qualquer outra morte.
A porta se abriu. Um vento correu pela sala de espera, carregando o chá consigo até derramar tudo no chão, uma voz gritou seu nome, pedindo para que entrasse. Estava acostumada a lugares escuros, mas nunca havia visto algo tão negro como o outro lado porta. Assim que entrou, nada se via. Esperou algum tempo até que seus olhos se acostumassem com o breu. Assim que sentiu a presença de todas as ali, sorriu… era uma grande festa surpresa de aposentadoria e todas as suas divisões estavam lá, cada uma com sua língua de sogra e chapéu do Darth Vader. “Nunca esqueceremos de você”, era a placa que se lia no fundo do salão central. Nada mais justo por aquela que fez muitos corações pararem de bater.
Enquanto isso os seres humanos brindavam com a vida… era um imenso feriado prolongado, até que… tudo voltasse ao normal.

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