— Aonde vai esta gente toda? — perguntou
alguém, ao ver uma verdadeira massa humana dirigir-se, apressada, ao palácio do
rei.
— O senhor é de fora? — disse o outro.
— Sim.
— Logo vi. Vão todos fazer o que fazem todos os
dias: admirar a beleza da filha do rei.
Juntando-se ao cortejo, o curioso forasteiro
foi conferir essa beleza tão disputada.
Na verdade eram três belezas, pois eram três as
filhas do soberano.
As duas primeiras eram inegavelmente belas. Mas
quando a terceira apareceu, a beleza das outras duas ficou completamente
esmaecida.
Psique era seu nome. Criara-se tamanho fascínio
diante de sua beleza que já estava se formando um culto em sua homenagem.
Alguns exageravam, dizendo que ela seria a própria Vênus, que decidira viver
entre os homens.
Mas ao mesmo tempo em que se homenageava a
deusa, comparando a beleza de Psique à sua, deixavam-se abandonados os seus
templos.
Essa afronta, naturalmente, chegou ao
conhecimento de Vênus, que decidiu vingar-se de alguma maneira daquela mortal.
— Cupido, preciso de sua ajuda! — disse ela um
dia ao filho.
— Pois não, minha mãe — disse o arqueiro
divino.
— Quero que você fira esta mortal com uma de
suas setas. Quero que Psique seja destinada ao ser mais monstruoso que possa
existir, de tal sorte que sua infelicidade exceda à da mulher mais desgraçada
do mundo.
Cupido, sempre obediente, partiu para cumprir
sua missão.
Ao cair da noite o jovem entrou no quarto onde a
jovem Psique dormia e apontou para ela um de seus dardos mais afiados, depois
de embebê-lo no filtro do amor.
Quando Cupido já tinha a seta apontada para o
peito da jovem, foi surpreendido por um gesto abrupto dela. Ao afastar os
cabelos do rosto, a jovem involuntariamente esbarrou com a mão no braço de
Cupido, que acabou ferindo-se levemente com sua própria seta.
Psique abriu os olhos, mas nada enxergou, pois
o deus do amor estava invisível. Sentindo-se confuso, Cupido retirou-se,
impossibilitado de desejar o mal para uma jovem tão encantadoramente bela.
Vênus, porém, conseguira fazer com que parte de
seus objetivos fossem alcançados. Nenhum pretendente se apresentou para
desposar a mais bela das filhas do rei. As outras duas, embora menos
disputadas, já haviam arrumados esposos.
— Cadê o príncipe encantado de nossa querida
Psique? — diziam as duas, em tom de ironia, e loucas de inveja da bela irmã.
O rei, finalmente preocupado diante do
inexplicável desprezo que se abatera sobre a sua filha predileta, decidiu
consultar o oráculo do deus Apolo para saber das razões.
— Sua filha não casará com um mortal — disse o
deus -, mas com um ser alado e perverso, que se compraz em ferir os homens e os
próprios deuses.
Depois acrescentou que Psique deveria ser
abandonada num rochedo, para que esse ser monstruoso viesse levá-la para o seu
palácio.
O rei ficou inconsolável com esse prognóstico
sombrio. Durante vários dias lutou contra a idéia de abandonar a amada filha a
este ser monstruoso, mas por fim teve de ceder à vontade dos deuses. O
casamento fúnebre teve sua data marcada. Após muito pranto, a jovem foi levada
em seus trajes nupciais até o alto do rochedo, onde foi abandonada à própria
sorte, pois assim determinara o oráculo.
Aos poucos os archotes que haviam sido acesos
foram se apagando um a um, enquanto a noite descia, escurecendo tudo ao redor
da pobre vítima. Psique, apreensiva, aguardava apenas o momento de ser
sacrificada — pois tinha a certeza de que era este o seu destino.
O tempo foi passando sem que nada acontecesse,
até que Psique acabou adormecendo. Nesse instante, os zéfiros — os ventos
suaves que sopram, vindos do oeste — surgiram em bando e raptaram a jovem, que
ainda estava adormecida no alto do rochedo. Ela, semi-adormecida, sentia o
vento agitar suas vestes e as nuvens umedecerem o seu rosto enquanto era
carregada. Aos poucos os zéfiros foram descendo com sua delicada carga, até que
a depositaram sobre um vale coberto de flores, próximo a uma fonte de águas
claras e abundantes.
Quando Psique despertou, a primeira coisa que
seus olhos viram foi um castelo que parecia saído de um sonho. A porta estava
aberta, parecendo que lá dentro ela já era aguardada. Uma brisa mansa às suas
costas a impeliu para diante. Dentro de um salão majestoso, recoberto de mármores
e de pedrarias, Psique descobriu-se em absoluta solidão.
— Há alguém aqui? — disse a moça, cuja voz
ecoou pelas colunas de ouro. perdendo-se nos corredores amplos e vazios.
Psique subiu lentamente pelos degraus de uma
imensa escadaria de pórfiro. cujos corrimões eram do mais puro e esverdeado
jade. Depois percorreu várias salas, repletas das mais belas estátuas que seus
olhos já haviam contemplado. Todas, sem exceção, representavam amantes nus,
cujos braços enlaçavam c corpos dos seus seres amados. Cada sala revelou-se
mais bela do que a outra, até que a jovem, finalmente, chegou a um quarto
espaçoso, iluminado pela luz alegre de uma imponente lareira. Um leito
perfeitamente arrumado estava no centro do quarto, enquanto uma refrescante
brisa agitava as finíssimas cortinas rendadas das janelas.
Neste instante uma voz delicada soou em seus
ouvidos, provocando-lhe um ligeiro susto:
— Jovem soberana, de hoje em diante este
palácio é seu. Aqui estou para servir ao menor dos seus desejos.
Na parte interior do aposento havia um quarto
de banho. Psique adentrou-o e percebeu, maravilhada, que uma banheira de
mármore cheia de espuma parecia aguardá-la.
— Permita que a ajude a se despir — disse a
mesma voz invisível. Psique sentiu que sua pequena túnica deslizava por sua
pele, retirada por
uma delicada mão invisível. Logo a jovem estava
mergulhada na água refrescante, sentindo que mãos invisíveis ensaboavam seu
corpo.
A seguir Psique desceu ao salão principal, onde
a esperava um banquete digno de uma rainha. Mais tarde ela recolheu-se
definitivamente ao seu quarto, embora sempre sozinha.
— Quem é você e por que nunca aparece? — disse
a jovem.
A voz, no entanto, não respondia a nenhuma de
suas perguntas.
Ainda exausta dos acontecimentos, a jovem
deitou-se em seu magnífico leito e adormeceu. Cupido, tão logo teve a certeza
de que sua amada dormia, aproximou-se discretamente e deitou-se a seu lado.
Ficou longo tempo observando suas feições. Depois, deu um beijo na boca da
jovem, que despertou, assustada.
— Quem está aqui? — disse ela ao sentir os
braços dele estreitando seu peito.
— Não se assuste, meu amor! — disse o jovem,
cobrindo-a de ardentes carícias. Durante a noite inteira, os dois entregaram-se
ao amor. Psique, sem nunca poder ver as formas de seu amado, procurava enxergar
com as mãos, deslizando seus dedos pelo rosto e pelo corpo inteiro daquele
homem, que fazia o mesmo, só com a diferença de que podia vê-la perfeitamente.
Mas Cupido o fazia com tal ardor que o cego parecia ele.
Até que ao amanhecer ambos adormeceram unidos
num mesmo abraço.
Os dias se passaram sem que o futuro esposo de
Psique se manifestasse de forma visível, embora continuasse a visitá-la todas
as noites, não deixando nunca de satisfazê-la. A jovem foi aos poucos se
familiarizando com todo o esplendor do castelo e, passada a novidade, começou a
sentir falta da presença física de alguém.
— Meu marido, por que não vem me fazer
companhia? — clamava ela, desesperada, pelos corredores vazios do imenso
palácio. — Como posso amar um ser invisível?
— Minha visão lhe seria funesta, adorada
Psique. Eu poderia feri-la e provocar em você sofrimentos como nunca antes
talvez tenha experimentado.
— Tenho saudades também de meus pais e de
minhas irmãs — disse a jovem. — Gostaria imensamente de poder revê-los...
Cupido, sempre invisível, prometeu pensar no
pedido, enquanto deixava Psique entregue outra vez à sua cruel solidão.
Na mesma noite, o amante invisível retornou com
uma boa notícia:
— Psique, estou disposto a permitir que suas
irmãs venham visitá-la. Radiante de alegria, ela abraçou o vazio.
— Obrigada, meu querido esposo!
Cupido, porém, temeroso de perder sua adorada
Psique, acrescentou:
— Tome, entretanto, muito cuidado com suas
irmãs. Elas certamente ficarão tomadas pela inveja quando virem que você é senhora
deste magnífico palácio e de todas as riquezas que ele contém.
Os zéfiros, instruídos por Cupido, trouxeram,
assim, as irmãs de Psique, ia mesma maneira que haviam trazido a jovem.
Ainda sob o impacto daquela viagem
surpreendente, as duas irmãs adentraram o palácio, conduzidas pelas mãos de
Psique.
— Isto tudo é seu? — disse uma delas, sem
conseguir conter a inveja. Embora vivesse também num palácio, o seu não era, no
entanto, nem a sombra deste que tinha agora diante dos olhos.
Um
rancor surdo agitava também a alma da outra irmã.
— E seu maravilhoso esposo, onde está? — quis
saber a outra, na esperança de que fosse mesmo um ser horroroso, tal como
predissera o oráculo de Apolo.
Psique foi obrigada a confessar que jamais
pusera os olhos nele, nem em qualquer pessoa viva desde que pusera os pés
naquele lugar encantado.
— Logo vi! — disse a primeira das irmãs, em
triunfo. — Deve ser tão monstruoso que não tem coragem de aparecer abertamente.
— Psique, se o seu marido é um monstro —
concluiu a outra, radiante -. cedo ou tarde irá matá-la.
A jovem, atordoada por aqueles sombrios
prognósticos, encheu-se de medo de seu enigmático esposo. Uma das irmãs correu
até a cozinha e ao voltar lhe estendeu uma faca afiada, ordenando:
— Você deve matá-lo.
— Matá-lo? — indagou Psique, atônita.
— Mate-o, antes que ele a mate — disse a
invejosa. — Hoje à noite, preste atenção, você fará o seguinte: assim que
deitar, esteja atenta para quando ele vier unir-se a você. Tão logo sinta que
ele adormece, levante-se e, tomando de uma lâmpada, ilumine a sua figura, a fim
de ver quem é verdadeiramente o seu marido.
— Esteja, porém, nesse instante, com a faca na
mão — disse a segunda irmã. cujos olhos faiscavam. — Assim que perceber que tem
um monstro odioso a seu lado, trespasse seu coração com a lâmina, sem pensar
duas vezes.
Psique, julgando que o conselho era ditado pela
amizade, resolveu finalmente decifrar o mistério.
— Está bem, farei exatamente como dizem — disse
a jovem.
Naquela mesma noite, Psique pôs em execução o
seu plano. Tão logo percebeu que seu marido entregara-se ao sono, levantou-se
e, tomando da lâmpada, dirigiu sua luz em direção ao rosto do esposo. Uma
exclamação malcontida de espanto escapou dos lábios da jovem quando divisou o
rosto de Cupido. Tinha diante de si o mais belo rosto que seus olhos já tinham
visto.
— Por Júpiter, como é belo! — exclamou
extasiada.
Porém, ao inclinar-se para ver melhor as
feições de seu amado esposo. Psique inclinou demais a lâmpada, o que fez com
que uma gota do azeite caísse sobre o ombro dele. Cupido, abrindo os olhos,
enxergou a jovem, que empunhava numa das mãos a candeia e na outra a adaga
afiada.
Pondo-se em pé, Cupido exclamou:
— Então é isto! Você preferiu seguir os
conselhos maldosos de suas pérfidas irmãs, em vez de confiar em minhas
palavras!
— Não, não, jamais pretendi fazer-lhe mal algum
— disse Psique, lançando fora a adaga.
Mas Cupido já havia deixado o quarto, voando
pela janela.
Psique caiu desconsolada na cama. Quando ergueu
a cabeça, percebes. estarrecida que estava deitada sobre a grama verde dos
campos. Ao seu redor não havia nem sinal mais do seu maravilhoso castelo.
— O que foi feito de meu palácio? — exclamou
Psique, sem nada entender. Relanceando o olhar ao redor, percebeu que estava a
poucos metros da casa de suas irmãs.
Psique correu para lá, para buscar alguma
explicação. Depois de ser recebida com espanto por elas, contou toda a sua
terrível história.
— Oh, que pena... — disse uma das irmãs,
fingindo pesar.
— Aí está o preço da ingratidão — disse a
segunda, fingindo revolta. — Deveria ter sido mais generosa, depois de tudo o
que ele fez por você.
No mesmo dia as duas decidiram voltar ao local
onde haviam sido raptadas pelos zéfiros, na esperança de que estes as
conduzissem de volta para o palácio de Cupido.
— Quem sabe uma de nós não será a escolhida
para substituir nossa ingrata irmã? — disse uma delas, cheia de esperanças.
Deitaram-se ambas sobre a relva e aguardaram
que os zéfiros surgissem novamente. Durante muito tempo estiveram ali deitadas
sem que soprasse a menor brisa. Um calor insuportável descia do céu, fazendo-as
quase perder os sentidos de tanto calor.
— Então,
idiotas, vêm ou não nos carregar outra vez? — bradou a mais colérica das duas,
no alto da montanha.
Em resposta, sentiram as duas uma forte brisa
soprar em seus rostos.
— Vamos, mana, os zéfiros já estão aqui pra nos
levar até o palácio encantado! Dando as mãos, as duas lançaram-se no espaço,
certas de que seriam imediatamente seguras pelas vaporosas mãos dos suaves
ventos. Seus pés, no entanto, pedalaram no vazio, sem que braço algum impedisse
a queda violenta de seus corpos. Com um grito de pavor, as duas mergulharam,
despedaçando-se no abismo.
Enquanto isso, Psique, desesperada, decidiu ir
falar pessoalmente com Vênus, uma vez que já sabia que era mãe de Cupido.
— Veio ver se terminou de matar o meu filho? —
disse a deusa, com raiva.
— Perdão, jamais tive a intenção de machucar o
seu filho — disse Psique. Vênus, sem se deixar comover pelas palavras da jovem,
decidiu mantê-la sob seus serviços,
maltratando-a e impondo-lhe serviços e obrigações acima de suas forças. Mas a
jovem suportava tudo com ânimo forte, disposta a ir até o fim apenas para
reaver o esposo. Vênus, vendo que Psique era resistente, decidiu impor-lhe uma
tarefa além de suas forças:
— Quero que você vá aos infernos pedir a
Prosérpina que me envie uma caixa de beleza, pois perdi um pouco da minha ao
cuidar de meu filho doente.
Psique, sem saber como fazer para chegar até o
reino de Plutão, entregou-se ao desespero. Chegou a pensar em desistir até da
própria vida, quando uma voz invisível lhe disse:
—
Faça como vou lhe dizer e conseguirá chegar até onde mora Prosérpina.
A mesma voz prosseguiu a lhe falar, indicando o
melhor meio para alcançar o Hades sombrio. Psique escutou tudo com grande
atenção e partiu logo em seguida para cumprir sua missão.
Andou por vários dias até alcançar uma gruta,
no interior da qual descortinou uma fenda que conduzia ao reino de Plutão.
Munida somente de sua coragem, Psique penetrou nos escuros labirintos da morada
dos mortos. Depois de convencer o barqueiro Caronte a levá-la para a outra
margem do rio, passou incólume por Cérbero, temível cão de três cabeças que
guarda a entrada do inferno.
Adiantando-se, chegou finalmente diante de
Prosérpina e fez o que Vênus lhe ordenara.
Após ter recebido das mãos da rainha infernal a
caixa mágica, Psique preparou-se para retornar para o seu mundo.
Após retornar para a luz do dia — que
contemplou com infinito alívio -. Psique preparava-se para levar o precioso
objeto para a deusa do Amor.
— O que
haverá, afinal, aqui dentro? — disse Psique, embora lembrasse bem da
recomendação que a voz lhe fizera para que não abrisse a caixa.
Porém, ao abri-la, Psique foi envolvida por uma
nuvem mortal — a nuvem do sono eterno, que a prostrou sobre o solo, como morta.
Cupido, que não agüentava mais de saudades de
sua adorada esposa, resolveu sair à sua procura, aproveitando-se de um descuido
da vigilante mãe. O jovem voou de um lado para outro até que encontrou Psique,
caída no chão. desacordada.
— Eu sabia, sua curiosidade estragou tudo outra
vez! — exclamou Cupido que fora a voz que a advertira para não abrir a caixa
misteriosa.
Cupido, no entanto, conseguiu retirar do corpo
de Psique o sono mortal e devolvê-lo para dentro da caixa. Psique, aos poucos,
foi reabrindo os olhos. : que percebeu estar nos braços de seu amor.
— Psique, leve a caixa para Vênus, mas, pelo
amor que me tem, não a abri outra vez! — disse Cupido. — Enquanto isto vou
falar com Júpiter para que convença minha mãe a aceitá-la como minha esposa.
Cupido, alçando um vôo rápido, foi cumprir o
que dissera. Tanto implorou ao deus dos deuses, que este decidiu interceder a
favor de ambos diante de Vênus
Psique foi chamada, então, à presença dos
deuses e recebeu das mãos do próprio Júpiter uma taça contendo o néctar da
imortalidade.
— A partir de agora você será uma deusa, também
— disse ele, estendendo a taça.
Enquanto Psique bebia
o néctar, uma linda borboleta pousou sobre sua cabeça. Ela e Cupido uniram-se,
assim, num amor feliz e eterno.
É uma história lindíssima!
ResponderExcluirE está muito bem contada!
Parabéns!
http://rintintinechocolate.blogspot.com/
Obrigado Déborah Ribas, seu blog é também muito interessante. Agradeço a vinda, volte sempre...
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