Briga entre Deus e Diabo


Certa vez eu estava sentado debaixo de uma amendoeira, daquelas que se dá em qualquer lugar e vi ao longe uma estranha nuvem de poeira. Fabricava um cheiro estranho, uma mistura de enxofre com o aroma de pétalas de rosa.
Avistava remotamente com normal curiosidade. Nada me faria sair de meu conforto, nem mesmo uma abelha a lutar pelo pedaço de doce que permanecia exposto em cima de minha negra mochila. Eu não movia um músculo sequer, vivia o ócio além de suas extremidades. Mas algo novo e inadequado para aquela monotonia em que cercara o mundo acontecia. Uma nuvem de poeira parecia ir e vir na minha direção e eu apenas queria relaxar, fosse lá o que fosse, eu sabia que sofreria as conseqüências, mas que culpa tenho se meus músculos de nada adiantam quando, na verdade, o que se quer é estar em transe?
Naquele dia em que tudo parecia meio termo, nas circunstâncias entre um, zero e menos um, fazia um enorme sol assim como se avistava uma tempestade gigantesca. Rapidamente pensei que em algum lugar alguém devia estar sofrendo, já tinha visto isso na televisão uma vez, pessoas que haviam perdido suas casas por conseqüência de uma natureza feroz e vingativa.
Mas eu estava feliz. Eu não tinha nada a ver com os problemas dos outros até que passassem a ser os meus. Fora isso, eu queria ser o pé daquela amendoeira, estar vivo e morto sem fazer esforço. Eu me sentia em uma espécie de umbral.
Quando fiz uma enorme força para reparar na figura estranha que surgia ao longe, percebi que se tratava de um humano qualquer, ofegante, vindo de longe como um forasteiro pronto para trazer-me as notícias. A imagem avivada e retangular de cinema, os raios surgidos por detrás daquela imagem a mim semelhante, traziam um toque magistral ao sonífero verde campo.
Não é de se reparar as flores lutando contra o vento, nem é de se precaver contra as amêndoas caindo ao montes no ritmo sonoro do ar em movimento. Não se percebe quando se está em uma rua agitada, só há de se pensar em espancar os pombos. Os carros, as vozes, os prédios rangendo, os pássaros abafados… nada se encaixa em minha conjectura sobre a idiotice cabida em cada paletó ou bolsa;
Ninguém jamais verá o que vi naquele final de tarde de Novembro. Aquele homem, já reconhecido por meus olhos perspicaz, feito pintura revelada, trazia-me o anúncio do milênio. Não é interessante expor sua identidade aqui, assim, com uma nudez aparente, apenas para fazer de seu mistério curiosidade.
Enquanto eu jogava dado com a vida, comendo pão de mel e bebendo suco de goiaba em caixa, tudo acontecia. As ações subiam, o taxista buzinava, a lua se preparava, a mulher se dirigia para o parto, o homem atirava, o presidente era eleito, o preso era solto, a criança chorava, o pássaro cantava, o chão tremia, a moça dava, o homem comia, a bolsa estourava, a música alguém ouvia, a Igreja louvava, a casa caía, o saco estourava, a dor exalava e o amor sumia... Tudo acontecia, mas eu apenas jogava dado com a vida. Quem perdesse pagaria uma porção de pão de queijo com mate e limão.
Foi o tempo necessário para o homem chegar até mim, cansado e nervoso, bastante nervoso. Sua pele era áspera, sua face era suja e seus batimentos cardíacos acelerados.
Ele deve ter passado por maus caminhos – pensei.
Seus olhos eram fome. Sua boca era sede. Olhou, ao mesmo tempo em que falava, para o pequeno pedaço que sobrara do pão de mel. Não queria que ele mexesse em minhas coisas, não o conheço. Mas vi naquele mensageiro o semblante de horror, ele consumia todo o ar possível, não era justo que possuísse todos os males, sua fome pelo menos seria cessada.
Ele queria ser rápido, talvez eu não era o único a receber tal notícia, haveria outros que seriam contemplados pelo homem de aspecto frágil.
Eu impacientemente adiantei-me:
- O que trazes aqui homem?
Ele de primeira tentou-me dizer, mas seus pulmões brincavam de encher e esvaziar, esvaziar e encher, encher… até que num súbito ainda com os olhos esbugalhados, atirou-me suas palavras:
- Eu vi homem singelo! Vi com meus próprios… - ele respira com mais força – com meus próprios olhos que essa terra há de comer… vi o que ninguém mais viu!
E eu quase meio que sem jeito, abandonando a lentidão de meu posto, visto a inquietação, levantei-me ao pé da amendoeira e pus-me a dizer em voz baixa, de modo a tratá-lo com serenidade.
- Mas me diga, o que vistes do lado de lá, fora deste verde campo?
Quase sem ar, respondeu-me:
- Houve uma briga… uma briga entre Deus e o Diabo… mas não se preocupe… Deus ganhou.

2 comentários:

  1. Nossa que texto bonito! Você escreve muito bem, gostaria de escrever dessa forma.Você já escreveu algum livro?

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  2. Estou pensando em escrever, na verdade tem dois capítulos... mas me falta tempo!

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