Não havia outra luz se não a chama da vela. O cão se lambia, de preferência suas partes íntimas. Era notável a falta do que fazer. Ler um livro? Talvez sim. Mas o suor que escorria pela testa não lhe deixava pensar direito. Existem coisas que só servem para complicar, e o calor de quase 40 graus era uma delas.
Lembrou do doce na geladeira , pensou em abrir uma lata de leite condensado e pôr em cima. Sabia que ficaria enjoativo, mas nada se comparava a aquele final de semana sem luz.
Pegou o livro, “Eu sou o mensageiro”, abriu na página marcada, achou interessante em como o autor revela
O personagem principal, um cara sem muitas projeções, sem perspectiva nenhuma, caindo na cilada de salvar vidas sendo a sua uma merda inútil. Fez comparações, não tinha escolha, a cada página via-se um pouco de si, “o autor me conhece” pensou, “esse livro é uma cópia de mim”.
Deixou a leitura de lado, foi até a cozinha pegar o doce, abriu a lata e antes de pôr feito cobertura, encheu a boca de. Era delicioso o gosto do leite, mesmo sendo da pior marca.
Enquanto preparava-o, com a porta da sala aberta, pode ouvir vozes no andar debaixo. Elas vinham do corredor central. As pessoas pareciam estar se divertindo, algo que ele não fazia há muito tempo, não daquela forma. Nos dias de hoje, com tanta tecnologia, a diversão havia perdido o contato.
Lembrou de quando era criança, de como brincava muito. Pique-pega, carniça, pique-bandeirinha… era uma relação de brincadeiras sadias que atualmente não se vê. Ficou triste pelas gerações futuras, mas feliz por não fazer parte delas.
Vozes apressadas de crianças subiram os degraus. “Abacaxi” uma disse. “Amora” disse a outra.
“Letra A” pensou ele. “Hum, deixa-me ver… abacate!”.
Correto.
Mas suas palavras não passaram da cozinha.
Era um grupo informal. Não era bem vindo ali.
Terminou de preparar o doce e voltou para a mesa. A vela estava pela metade, assim como o leite condensado percebeu que a cera também era vagabunda. Derretia-se fácil, como o seu coração. Uma prova disso estava na tristeza que sentia ao ver o cão naquele estado. Pobre miserável, nem o dono ele tinha o controle de escolher. Resolveu então repartir o doce com o seu fiel amigo. O cão cheirou, olhou-o de lado, estranhando aquele pedaço de guloseima no chão. Cheirou outra vez e nada.
“Vamos… nem o doce esse desgraçado quer?” Desabafou em voz alta. “É melhor do que lamber o saco!” Concluiu.
Mas o cão, com focinho de paisagem, cheirou com rapidez até voltar a lamber-se de novo.
“Quer saber?” – disse o dono com ar de reprovação – “É por isso que sua boca fede!” – pegando o doce de volta, como se estivesse roubando-o de uma criança.
Cada garfada, um pensamento. Qual seria o próximo passo, digo, depois do doce o que mais faria?
O apartamento estava pequeno demais para tanta monotonia. A água quase morna na geladeira, o gelo perdendo seu estado sólido, a janela fechada por conseqüência da chuva…
Foi até o quarto, abriu o armário na esperança de que houvesse alguma peça chave para a falta do que fazer, quando deu de cara com o velho radinho de pilha. Depressa, ligou-o aumentando até o último volume. A voz do locutor falhada anunciava a próxima música, assim como, também, a certeza de que a pilha estava no fim.
“Não porquanto tempo agora? É só isso que me resta, não me deixe na mão!”
Mas o rádio parecia não ouvi-lo, tagarela que só, cada vez mais baixo, em cada estação. Cada vez mais intencional.
Até que deu seu último suspiro ao terminar com a última estrofe da melodia “Há tempos” da banda Legião Urbana. Tentou ver sentido nas frases.
Não achou.
Ou sua frágil inteligência não permitia chegar nem perto da razão.
“Talvez as coisas sem sentidos façam mais sucesso”.
É talvez.
(…)
Meu amor!
Disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem (Ela disse)
Lá em casa tem um poço
Mas a água é muito limpa...
E quando havia perdido todas as esperanças, quando o cão já havia zerado suas lambidas no seu âmago e a noite parecia não ter mais fim e o único mísero vento produzido no espaço entre ele e a sala que o envolvia vinha das asas de um mosquito sangue-suga, depois de horas a fio, preso pela incapacidade de se desvencilhar da falta de tecnologia, sentiu sono. Pensou em dormir. Suado mesmo.
“Amanha é outro dia” – se dirigiu ao cão.
Não nos restam dúvidas.
Abraçou o travesseiro, como sempre faz. Esticou o dedo até a helice do ventilador e girando-a tentou uma reanimação, feito respiração boca a boca, e nada. Durou alguns segundos até que sua força gerasse mais calor. Não adiantaria mais nada. Era ele, o cão e a vela.
Sentiu raiva.
Falta de respeito.
Alguém teria que pagar por isso.
Mas quem?
Num ímpeto, correu para a sala, pegou o telefone que permanecia inerte em cima do balcão, discou o número e esperou que alguém o atendesse. Do outro lado a voz se revela. O cão late. As pessoas do andar de baixo gritam. A chuva aumenta. O trovão ruge e as árvores balançam. A janela assobia. O vento apaga a chama da vela. Ele não exita.
“Faça-se a Luz!”
E a luz se fez.
É esse espírito que eu gosto!!!
ResponderExcluirSempre pode haver redenção... e haver final feliz...
Tu é dimaix!!!!
Cada dia melhor!!!
Adoro!!!
Só pra completar:
ResponderExcluirA FOTO É MANEIRÍSSIMA!!!!